Monday, August 11, 2014

O RASTRO QUE DEIXEI NO MUNDO



Percebi que, a medida que caminhava, ia me desfazendo em uma matéria empapada composta de sangue, suor e lágrimas, o pouco que andei de manhã me fez perder as solas do pé. Algumas pessoas me encaravam com nojo, eu não liguei, afinal, estava morrendo e quando se está morrendo, não temos tempo para ligar para o que os outros pensam de nós, o que, na verdade, configura uma bela filosofia de vida, visto que, estamos, desde o momento que nascemos, caminhando para a morte.

Larguei a mochila no chão - não queria peso extra, fiquei parado no meio da calçada, diante do rastro de mim, o rastro de corno (sim, sou corno) que deixei na rua. Algumas pessoas desviavam, outras, com medo de que tudo não passasse de um teste de solidariedade, desses apresentados no fantástico, me ofereciam ajuda, mas com um certo nojo de me tocar e instantaneamente começarem a derreter também. Eu não estava sendo simpático nem nada, afinal, eu tinha que calcular meus passos. Eu ainda tinha, provavelmente, 1,70m de Bruno para gastar. Visto que andei aproximadamente 1km e perdi uns 10 centímetros, era fácil calcular que havia sido eliminado 10cm de Bruno em 1km. Eu poderia andar 17 Km, então acionei o Google Maps (obrigado Google Maps) e estabeleci uma rota.

Ao seguir em frente, uma senhorinha, que só agora percebia o que se passava, desmaiou e caiu sobre meu rastro, vomitando e deixando então um rastro de si mesma, coitada, que já não tinha mais idade para deixar rastro nenhum que não fosse um desagradável cheiro de guardado que nem ela sabia de onde vinha.

Um cachorro, desses pugs caríssimos de última geração que as madames carregam, começou a comer meu rastro, a Dona, Madame, estava entretida demais com algo no celular para se importar com o que o cachorro, que servia apenas para preencher lacunas no instagram e se chamava Jorge, estava fazendo. Jorge abocanhava belos pedaços de rastro e parecia bastante satisfeito com o sabor, o que me fez sentir bem por alguns momentos.

Algumas pessoas estavam me filmando com o celular, torcendo por mim. Algumas já choravam e faziam longos textos, correlacionando o meu derretimento com situações de suas vidas, como  um namoro que não deu certo "Bruno está derretendo como o amor que um dia tivemos", com o salário que mal chegava e acabava, com a gordura acumulada na barriga, que, ao contrário de mim, não derretia.

(Jorge estava me botando pra fora, criando agora, um terceiro rastro, eu, a velha e o cãozinho jorge, unidos numa calçada perto da orla).

A imprensa apareceu, helicópteros, carros adesivados, cambistas cobrando ingresso, funkeiros sem fone de ouvido, sarados fazendo cooper, saradas fazendo cooper, tapioqueiras se aproveitando da multidão e eu olhando o céu, sobre meus toquinhos, respirando o cheiro de maresia, feliz, feliz da vida com a rota que havia decidido, calculei que chegaria ainda com ombros no destino estipulado, feliz de mim.


Metade de mim, parou em um banco e ficou olhando o mar. Eu precisava disso. As pessoas que acompanhavam e a imprensa fizeram silêncio, todos tensos, sem saber qual seria meu próximo "passo".

Parei para tomar uma casquinha e segui em frente. Pessoas colocavam bandeiras do Brasil em suas janelas, carros buzinavam em apoio, apresentadores de TV vendiam camisetas escrito #EstamosTodosSumindo e no entanto só eu estava.

Faltava pouco de mim e pouco do caminho, já via meu alvo e no entanto, fui atingido na cabeça por um piano de cauda, que me rachou o pouco que me restava, mas, me deixou, mesmo morto, com um sorriso permanente de dó-ré-mi-fafá de Belém. Recolheram o que restou do meu corpo e do meu rastro e me jogaram ao mar seguido de aplausos e uma comoção que durou ao todo cinco minutos, depois, cada um seguiu para suas casas, passando por cima de onde eu passei sem dó nem piedade, apagando aos poucos o rastro que eu deixei no mundo.

1 comment:

Antonio de Castro said...

eu adorei. tudo.

das referências pop à realidade da nossa efemeridade.

tem um quê de cinismo e pessimismo aí, na minha opinião. mas tem tanta verdade.